Tecnologia pode ajudar 3 milhões de brasileiros sem registro civil

A tecnologia pode ser um caminho para integrar à sociedade os 3 milhões de brasileiros, que, sem registro civil, não têm acesso a direitos básicos.
Significa não poder ter um trabalho formal e enfrentar dificuldades para atendimento em um posto de saúde, por exemplo. Iniciativas como o programa Governo Eletrônico, implementado desde os anos 2000, visam facilitar o acesso a serviços públicos com o auxílio da tecnologia. A nova carteira de identidade digital, que começou a valer em julho de 2022, é outro passo nesse sentido, já que considera o CPF como registro único, acessível por meio de um QR Code.
Apesar de a nova identidade diminuir o número de documentos necessários para acessar serviços públicos, ainda há um contingente de pessoas que não têm CPF.
Uma das formas de resolver esse problema é reproduzir no Brasil o que está sendo colocado em prática em Moçambique, diz Frederico Schardong, professor de informática no Instituto Federal do Rio Grande do Sul e doutorando no LabSEC (Laboratório de Segurança em Computação) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Segundo ele, o governo deveria solicitar que os 3 milhões de indocumentados visitem ou sejam visitados por agentes do registro civil —um dos desafios é localizar essas pessoas.
Como alternativa, Schardong sugere que, quando a pessoa precisar de um documento pela primeira vez, seja permitido que ela faça o autorregistro já em uma plataforma de identificação eletrônica. Em um primeiro momento, diz Schardong, para validar o autorregistro, familiares ou amigos com documento de identificação podem atestar a identidade da pessoa.
Documentos formais ou informais, recibos, contratos e históricos também podem complementar a identificação. A partir daí, o governo conseguiria mapear essas pessoas, investigar mais a fundo se as informações são verídicas e dar início ao registro tardio de nascimento.
Para o advogado Christian Perrone, chefe das áreas de direito e govtech do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), os ônibus do programa Justiça Itinerante também seriam importantes.
A iniciativa, regulamentada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), leva juízes e membros do Ministério Pública da Defensoria Pública a populações que vivem longe dos grandes centros e em áreas sob risco.
Por outro lado, os dois especialistas afirmam que há possíveis riscos de fraude e problemas de autenticação no autorregistro, como a duplicação da identidade ou o cadastro de dados falsos. Isso porque não existiriam evidências fortes de que aquela pessoa diz ser quem é.
A solução seria a visita do registrador civil que, por sua fé pública e pelo trabalho investigativo, poderia comprovar a existência da pessoa e a veracidade das informações.
De acordo com Schardong, o processo de inclusão de fato acontece porque, mesmo enquanto a identidade eletrônica ainda estiver em análise, já permite que essas pessoas tenham acesso a serviços públicos.
 
Efeitos da pandemia
 
Michael Bernstein, fundador e diretor de tecnologia da Clicksign, empresa de assinatura eletrônica com certificação de segurança da informação, afirma que a pandemia acelerou o processo de digitalização no país e levou diversos setores a adotarem documentos eletrônicos.
Segundo ele, esse cenário resultou em redução de custos, agilidade, segurança, aumento da produtividade e sustentabilidade, por causa da possibilidade de armazenamento na nuvem.
“Nos setores da indústria e do comércio em que ainda havia resistência à entrada dessa tecnologia, houve uma ruptura comportamental e essas empresas perceberam como a assinatura eletrônica e/ou digital é legalmente válida e pode agilizar o dia a dia de trabalho.”
Nesse período, foram aprovadas novas leis, como a que trata especificamente de assinaturas eletrônicas, levando o Brasil a ser líder desse processo na América Latina.
“No fim de maio, o Congresso Nacional aprovou uma medida provisória que define que todos os cartórios devem funcionar em ambiente digital para providenciar registros públicos, fazer atendimento remoto, enviar e receber documentos e títulos, fazer a expedição de certidões e a prestação de informações, para citar alguns exemplos. Tudo isso é extremamente vantajoso para empresas, governo e pessoas”, diz Bernstein.
 
Segurança de dados
 
Se essa transformação digital traz agilidade, a segurança desses dados ainda preocupa.
Marcelo Barcelos, consultor em internet das coisas e inteligência artificial, diz que a progressão da conectividade também deixa as pessoas mais rastreáveis.
As informações dos cidadãos passam a ficar disponíveis em um servidor que, por mais seguro que seja, é passível de algum tipo de ataque. “Estamos acompanhando sequestros de dados públicos no mundo inteiro, inclusive em países que são referência para diversas questões sociais, como Finlândia, Noruega e Suécia”, afirma.
De acordo com ele, a Lei Geral de Proteção de Dados ainda é desconhecida de boa parte da população do Brasil, e o governo de Jair Bolsonaro (PL) não está preocupado em colocá-la em prática.
“A carteira de identidade digital é incrível, prática, contemporânea, mas em mãos erradas, ou irresponsáveis, pode ser um prato cheio para que nossos dados transitem em lugares que a gente jamais gostaria que estivessem.”
Para Perrone, do ITS-Rio, sistemas construídos de maneira descentralizada, baseados na tecnologia blockchain, podem evitar ataques a sistemas e sequestros de dados.
 
Entenda a identidade digital
 
Identidade Digital
Dependendo do contexto, pode ter diferentes significados e interpretações. Ela pode ser desde login e senha para uma mídia social até uma verificação de cadastro compartilhada entre bancos. Para determinado país, a ID digital é uma fotografia da identidade física, como o aplicativo de smartphone carteira digital de trânsito, no Brasil
 
Documento eletrônico
É concebido para existir integralmente no mundo virtual, sem necessariamente ter uma versão física ou mesmo uma representação visual. Um exemplo de identidade eletrônica é uma conta em um servidor de email e armazenamento em nuvem. Outro exemplo é a identidade criada pelo governo brasileiro chamada de Gov.br
 
Benefícios da ID digital
Mais acessibilidade
Maior velocidade de assinatura de um documento (3 minutos)
Comodidade de assinar documentos de qualquer lugar e em qualquer horário
Eliminação dos custos com transporte e armazenamento
Viabiliza a inclusão social e digital da população
Confere acesso direto a serviços de governo eletrônico como a carteira nacional de habilitação e o título de eleitor
Com a identidade eletrônica, a pessoa pode compartilhar apenas dados específicos, quando necessário
 
Desafios da ID digital
Necessidade de criação de um arcabouço legal de regulamentação
Implementação de mecanismos de segurança efetivos para diversos perfis de usuário
Desenvolvimento de interfaces e interações simples e efetivas que sejam significativas para os usuários
Risco de sequestro de identidade digital/eletrônica, que pode acontecer, por exemplo, no auto-registro em nome de outra pessoa

 

Esta reportagem foi produzida a partir de conteúdos debatidos no Lab Sociedade Digital, parceria entre a Unico, ID tech em identidade digital, e a Folha, com apoio do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio)