Modelo do Registro de identidade Civil (RIC). Documento chegou a ser lançado em 2010 mas, encontra-se suspenso
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Mesma digital, mas fotos, nomes e até sexo diferentes em duas carteiras de identidade. O estelionatário, apresentando-se como homem, tentava comprar nada menos que um hotel famoso na área central de Brasília, no valor de R$ 95 milhões. Desconfiados, os advogados que conduziam a negociação, em nome do empreendimento, acionaram a polícia. Na delegacia, os investigadores descobriram que o tal empresário era uma mulher, com longa ficha criminal.
O golpe, baseado em uma série de documentos falsos, por pouco não se consumou. Mas exemplifica, num caso extremo, o risco de fraudes facilitadas por um sistema de identificação civil falho e fragmentado, já que é possível tirar um RG em cada unidade da federação. No país dos desvios bilionários descobertos em rebuscados esquemas de corrupção, os custos decorrentes desse tipo de fraude vão de R$ 5,82 bilhões, num cálculo conservador, a R$ 11,53 bilhões ao país. A estimativa do prejuízo foi calculada em estudo inédito do Ministério da Justiça em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), usando dados de 2012, base mais completa disponível.
Somente no mês de agosto deste ano, foram registradas 167.395 tentativas de fraude conhecida como roubo de identidade, em que dados pessoais são usados por criminosos para firmar negócios ou mesmo obter crédito com a intenção de não honrar os pagamentos. O número, adiantado pelo Serasa Experian ao GLOBO, representa uma tentativa de fraude a cada 16 segundos no país.
Com o título “Custos econômicos e sociais de falhas nos sistemas de identificação individuais”, a pesquisa obtida pelo GLOBO foi realizada como parte do projeto do Registro de Identificação Civil (RIC), uma espécie de novo RG do brasileiro, com parâmetros mais avançados de segurança e que unificaria diversos outros documentos. A iniciativa, lançada ainda pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, estava em andamento quando o Executivo decidiu, há cinco meses, encaminhar um projeto de lei ao Congresso transferindo a tarefa à Justiça Eleitoral.
Marivaldo de Castro Pereira, secretário-executivo do Ministério da Justiça, afirmou que a ideia inicial de um registro único não foi adiante, porque cada documento tem uma função diferente. Como o TSE já estava fazendo o recadastramento biométrico dos eleitores, com cerca de 30 milhões de pessoas já incluídas, o governo decidiu que seria melhor unir esforços a continuar tocando o projeto sozinho. Para ele, o mais importante é criar uma base central:
— O custo estimado da falta dessa centralização dos dados é enorme, sobretudo nas relações privadas, de consumo. Há uma dificuldade enorme de apurar se a pessoa é, de fato, quem ela diz ser. É preciso termos uma base única para que essa checagem seja feita de qualquer parte do país.
Fraudes atingem bancos e seguradoras
Enquanto o novo sistema de identificação civil não sai do papel, os negócios são a área mais afetada pelas fraudes. De acordo com as projeções da pesquisa, os custos variam de R$ 5,46 bilhões a R$ 10,11 bilhões anuais aos setores de serviços em geral, telefonia, bancos, financeiras, seguradoras e construtoras. Menor, mas não menos grave, a fatura associada ao governo oscila entre R$ 366,61 milhões e R$ 1,42 bilhão, levando-se em consideração fraudes em programas sociais, na Previdência e gastos com processos judiciais.
A apresentação dos resultados em intervalos largos se deve a “poucas fontes de dados” sobre crimes ligados ao processo de identificação segura no país, diz a introdução do estudo. “Mesmo assim, boas aproximações sobre a magnitude e os desdobramentos do problema podem ser realizadas”.
O delegado Joás Rosa de Souza não tem cálculo pronto, mas garante, pela experiência como diretor da Divisão de Repressão a Fraudes da Polícia Civil do Distrito Federal, que o rombo é grande. Embora se recorde do falso empresário que tentou comprar um hotel, com a ajuda do comparsa que fingia ser seu motorista, pela característica inusitada do caso que investigou ano passado, Souza afirma que os golpes acontecem o tempo inteiro — de transações modestas a golpes milionários. Na raiz dos problemas, a falta de comunicação entre os estados:
— Um país como o nosso, em pleno século 21, ter institutos de identificação em cada estado que não se comunicam é uma falha grosseira e inadmissível. Basta uma certidão de nascimento falsa para o criminoso tirar, em outro estado que não tem a digital dele armazenada, uma identidade com nome diferente. E uma identidade legítima, com papel timbrado do Estado.
Antonio Maciel Aguiar Filho, presidente da Federação Nacional de Profissionais em Papiloscopia e Identificação, ressalta que um cadastro nacional de digitais também seria importante na área de investigação de crimes violentos. Mas reconhece que representará um golpe certeiro nos estelionatários. Em palestras, Maciel costuma apresentar o caso de um homem de Goiânia que, com 16 carteiras de identidade com nomes diferentes, foi beneficiário de 16 aposentadorias até ser descoberto.
À frente do projeto de um novo documento, batizado de Registro Civil Nacional (RCN), a Justiça Eleitoral decidiu adotar, como biometria complementar à digital, a face. Por isso mesmo, o recadastramento feito no ano passado com parte da população incluía fotos do rosto do eleitor. O método, entretanto, foi reprovado por estudo do governo ao qual O GLOBO teve acesso.
A pesquisa “Relatório técnico das seis biometrias prováveis de utilização no Registro de Identificação Civil” foi finalizado no ano passado, quando o projeto de um novo RG para o brasileiro era tocado pelo Executivo. No estudo encomendado pelo Ministério da Justiça, a equipe assinala que a “face é uma das biometrias mais fáceis de serem fraudadas” por métodos como “maquiagem, utilização de máscaras e realização de cirurgias plásticas”. O levantamento indicou, como método complementar, o reconhecimento da íris do olho. Marivaldo de Castro Pereira minimiza a discrepância entre as técnicas adotadas no projeto atual em relação ao que estava indicado no estudo da própria pasta.
— Nada impede que no futuro, para modernizar a base, adote-se uma nova biometria. Pode ser que daqui a uma década apareça uma outra, que não a íris. Isso muda muito. Se tivermos a base única com a digital já será um ganho enorme — diz Marivaldo.
Íris do olho reforçaria sistema
O estudo do Ministério da Justiça destaca, entretanto, que 21% da população, cerca de 42 milhões de pessoas, podem apresentar desgaste da impressão digital, devido à atividade que exercem, sobretudo em produção florestal, agrícola ou pesca. Para aumentar o grau de confiança do sistema, entraria o cadastramento da íris do olho.
A proporção de pessoas sem íris nos dois olhos é de 0,0018% da população, o que daria 3.600 pessoas no Brasil. Ao se combinar as duas biometrias, a probabilidade de cidadãos que não contam com ambas no país seria de 0,00038%, ou seja, apenas 760 pessoas, aponta o estudo.
“Fraudar as duas biometrias simultaneamente (a íris e a impressão digital) exigiria um esforço e habilidade tão superiores e complexos que inviabilizaria ataques maliciosos”, destaca a pesquisa. Além disso, o estudo ressalta que a íris tem sido usada como mecanismo de identificação individual na Índia, Indonésia e México. As outras biometrias estudadas foram assinatura, veias da mão e voz. Incluindo a face, o estudo diz que elas “não devem ser utilizados num programa de grande escala que preze pela qualidade da informação”, por apresentar “elevadas taxas de erros”. Entre os problemas mencionados estão a vulnerabilidade à falsificação. O Tribunal Superior Eleitoral não retornou sobre uma eventual inclusão da íris como biometria no novo projeto.