Dentro da vastidão do tema, um aspecto que pode parecer periférico, mas tem tirado o sono de muitos jurisdicionados e profissionais do direito é a perspectiva de atrito entre esta nova ferramenta processual e o exercício do direito de ação a todos garantido pela Constituição brasileira. Por isso, minha proposta de análise, neste estudo, é dar resposta a duas questões: a) O processo judicial eletrônico prejudica a garantia constitucional do acesso ao Poder Judiciário?; b) Mesmo assim, convém levá-lo adiante?
A Constituição Federal de 1988 garante, no seu artigo 5º, inciso XXXV, como um dos seus princípios emanados do fundamento republicano de respeito à dignidade humana: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Na verdade, o que a norma garante acesso do cidadão ao Poder Judiciário para que este, cumprindo um dever institucional, lhe dê acesso à Justiça postula. Tal perspectiva dá margem ao exame de dois pontos cruciais para o êxito da análise: a) a sinonímia ou antinomia das expressões acesso ao Judiciário e acesso à Justiça; b) os matizes conceituais do substantivo acesso.
Acesos ao Judiciário e acesso à Justiça
O referido artigo 5º, inciso XXXV, é a cristalização em norma do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que concede ao indivíduo o direito subjetivo de ter solucionados seus conflitos de interesse pelo Estado investido no poder de administrar a Justiça.
Isso nos parece deixar clara a distinção entre acesso ao Judiciário e acesso à Justiça, nem sempre notada, pois dá a primeira impressão de que, ao mesmo tempo, separa e junta as duas expressões, malgrado o contraste entre a abstração do princípio jurídico e a materialidade da norma processual. Por causa dessa impressão contraditória é que chegamos ao cerne da análise: a exigência de prévia fixação do conceito de acesso e da sutil variação de matizes que ele pode assumir no contexto do nosso tema.
Acesso quer dizer ingresso, trânsito ou passagem até algo a que se quer chegar ou se almeja conseguir. Considerado em si mesmo, o sentido desse substantivo é de singularidade absoluta, quer dizer: ou se tem ou não se tem trânsito. Mas, quando associado a outras expressões, pode adquirir, e eventualmente adquire, matizes que relativizam sua força, na medida em que o subordinam a condicionantes do trânsito de que trata.
Quando o texto constitucional diz que a lei não excluirá do Poder Judiciário “a apreciação etc…”, sem exceção, entra em jogo um pormenor de indispensável realce: acesso ao Judiciário e acesso à Justiça não são a mesma coisa, e por uma razão simplíssima: Justiça e Judiciário constituem entidades jurídicas distintas, ainda que idealmente igualadas na unidade da destinação final. E mais: pelo grau de pureza e grandeza do fim específico de cada um, o conceito de Justiça excede muito, em importância, o de Judiciário.
Comprova-se o acerto desta afirmação, conferindo-os. Justiça é o sentimento da igualdade humana e a prática do respeito ao direito do próximo. Para a doutrina católica, Justiça é a vontade permanente de dar aos outros o que lhes é devido, em perfeita consonância com a regra pagã de Ulpiano: suo quique tribuere. Judiciário é o poder social assumido pelo Estado de administrar a Justiça na sociedade organizada, mediante a aplicação de normas de conduta de cumprimento obrigatório.
Percebe-se por ai o quanto diferem as duas instituições: a Justiça corresponde a um direito social, que assegura, por meios adequados, o acesso ao efetivo reconhecimento dos direitos subjetivos, ou â sua reparação, quando lesionados; o Judiciário é o poder organizado para assegurar, tout court, o acesso à Justiça.
O diferencial é muito bem mostrado nas palavras de Capelleti e Garth: “O acesso à Justiça pode ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos” (CAPELLETI Mauro e GARH Bryant, “Acesso às Justiça” (trad. de Ellen Gracie Northfleet), P. Alegre, Fabris, p. 12).
Precisamente neste ponto se relativiza a força conceitual absoluta do substantivo acesso, que abre mão da virtude intrínseca da incondicionalidade, por efeito de dois matizes de abrandamento: a acessibilidade, que vem a ser a qualidade dos meios a que ficam submetidos os necessitados do acesso ao Judiciário, e a operabilidade, que vem a ser o manejo dos meios para obter do Judiciário o acesso à Justiça, alvo nuclear da garantia constitucional. Ambos os matizes têm natureza nitidamente instrumental, que os conecta com a noção de processo e procedimento, ou seja, de ordenamento sistêmico de atos que levem o litigio à cognição, à entrega da tutela jurisdicional e ao seu efetivo cumprimento com simplicidade de forma, rapidez de aplicação e plenitude de resultado.
Completada a intelecção do curso escalonado do acesso ao Judiciário e, por ele, à Justiça, já podemos ver como é ele afetado por esta concepção inteiramente nova de processo e, consequentemente, procedimento compactados pela tecnologia eletrônica, não por acaso batizada de Processo Judicial Eletrônico (PJE), desde três perspectivas básicas: que é, que pretende, que muda.
Processo Judicial Eletrônico: O que é, o que pretende e o que muda
Sua identidade (e, portanto, sua origem) vem da repaginação que promoveu de toda a estrutura original do Direito (material) do Trabalho com a metamorfose da Revolução Industrial, fundada na mecanização em Revolução Tecnológica, fundada na informatização. Essa profunda mutação gerou inúmeras subversões de status quo da relação de trabalho da Revolução Industrial do século XVIII, que inevitavelmente fariam desaguar no largo estuário do Direito Processual o caudal de novas e múltiplas espécies de dissídios. É óbvio que a virtualidade da informática invadiria gradualmente a dinâmica processual até decretar a obsolescência do processo escrito. E outra coisa não é o PJE, em apertada suma, senão o decreto de banimento do papel pela eletrônica.
Em termos ideais, a pretensão é valer-se da velocidade da computação para imprimir a máxima racionalidade à rapidez do tramite processual, ou seja, traduzindo para o juridiquês: propiciar a tutela jurisdicional em tempo real (ou quase) de entrega da prestação jurisdicional com a (quase) instantaneidade da inteligência eletrônica. Isso faz a celeridade ser qualificada pela efetividade.
Em termos reais, a pretensão sintetiza-se na palavra oficial do CNJ: “O processo judicial eletrônico, tal como o processo tradicional, em papel, é um instrumento utilizado para chegar a um fim: a decisão judicial definitiva capaz de resolver o conflito. A grande diferença entre um e outro é que o eletrônico tem a potencialidade de reduzir o tempo para chegar à decisão.” (www.cnj.jus.br/programas/pje, consultado em 20/10/2014). E o texto consultado elenca os “atalhos para redução do tempo”.
Numa visão genérica, o PJE muda a cultura do processo sob a mesma impulsão tecnológica da cibernética e da informática e com a mesma rapidez supersônica que já mudou, e continua mudando, radicalmente a cultura social.
Numa visão específica, muda a sistemática e o modo de praticar os atos processuais, a potencialidade de alcance e produção de efeitos. Sobretudo, muda a compreensão de institutos clássicos do processo, e,g,, a jurisdição, a competência, a territorialidade de atuação dos órgãos jurisdicionais e a própria estrutura principiológica do Direito Processual, sob a forte influência da constitucionalização das ondas sucessivas de direitos fundamentais vindos e vindouros.
Nestes termos, a resposta, em termos absolutos, já está virtualmente antecipada pela análise: compreendido o substantivo acesso em seu sentido puro, o Processo Judicial Eletrônico não prejudica o acesso ao Judiciário garantido pela Magna Carta. Mais ainda: vai impor-se à sociedade, como engrenagem essencial de um mundo que já não é nosso, dos mais velhos, e não poderá ser rejeitado por um mundo que está nascendo, dos mais novos.
A conclusão anterior é importante, mas não terminante, se tivermos em mente a relatividade das coisas. Afinal, não foi à-toa que, de tanto procurar um conceito de relatividade, Einstein revolucionou a Física de sua época, mas não a incompatibilizou com a do seu porvir. Parece-me, então, que compreendido o substantivo acesso com os matizes da acessibilidade e operabilidade, o Processo Judicial Eletrônico está, sim, prejudicando presentemente o acesso ao Judiciário e com isso embaraçando o acesso à Justiça. Proponho mostrar por que.
O começo da reflexão sobre isto é muito simples: trata-se de um sistema novo, que utiliza ferramental de tecnologia avançada (e ainda nem estratificada). Fica, portanto, fora do alcance do conhecimento de muitos, provavelmente da maioria da população, à qual aturde esta exigência primária do CNJ: “A utilização do sistema exige a certificação digital de advogados, juízes, servidores ou partes que precisarem atuar nos novos processos”. Para juízes, membros do parquet, e servidores (antes se dizia “serventuários”), tudo bem, o aparato técnico da Administração lhes deposita no colo a chamada “assinatura digital”. Para os advogados e partes, tudo mal, pois o desterro da velha “assinatura manual” inabilita o acesso ao Judiciário, salvo um complexo de medidas que vão do aprendizado a providências burocráticas dificultosas e onerosas em tempo e custos, restringentes da acessibilidade.
O aparelhamento do advogado para praticar o novo processo é outro empecilho à acessibilidade. Se iniciante, por falta de ascensão ao nível de conhecimento tecnológico minimamente necessário a um bom desempenho, que nem de longe teve nos cursos de graduação centrada na dogmática jurídica, e de capacidade de investimento no variado, sofisticado e mutante aparato da computação, seus programas e aplicativos, exigente de novo e dispendioso aprendizado Se veterano (modo piedoso de dizer velho), pelo declínio de condições para chegar ao domínio de uma ciência nova (a da computação), que o priva do tino da operabilidade, a ser visto em seguida.
O declínio dos sentidos e da destreza de raciocínio são naturais da senilidade, refratária a assimilar inovações radicais, como as do PJE. Assim, elas literalmente esmagam como um pesado fardo as mentes fatigadas que se vêm forçadas a absorver com agilidade e manipular com destreza a parafernália de um universo que não é o seu e no qual já está muito tarde para penetrarem. E veja-se que o obstáculo da operabilidade não vitima somente o velho advogado por ser um advogado velho. Vitima todos que padeçam das chamadas “necessidades especiais”, das quais o parâmetro mais exemplar é o da cegueira, que justificou a criação, na Justiça do Trabalho, de uma “Comissão Permanente de Acessibilidade dos Deficientes Visuais”, presidida, aliás, por um eminente desembargador e jurista privado da visão.
Não menos lembradas podem ser as falhas do próprio meio veicular do sistema, a internet, motivo desta reclamação da presidência secional da OAB-RJ: “Como você explicar para um trabalhador que ficou duas horas no transporte público que sua audiência trabalhista foi cancelada porque o sistema está fora do ar?
Em resumo, concluo assim minhas reflexões:
1. O processo judicial eletrônico, por si só, não prejudica o acesso constitucionalmente garantido ao Judiciário.
2. Sua implantação é inevitável no universo social imposto pela metamorfose da Revolução Industrial em Revolução Tecnológica.
3. Presentemente, porém, traz sérios e visíveis embaraços a advogados e partes, concernentes à acessibilidade e à operabilidade.
4. Oxalá encontrem o PJE e a garantia constitucional de acesso ao Judiciário um modus vivendi pacífico dentro da relatividade geral da vida jurídica e social, tão bem teorizada por Einstein nos domínios da fenomenologia física.